Artigo – “A mulher da casa abandonada” na redação do (s) vestibular (es)
Por Jéssica Vasconcelos Dorta, professora de Português e Redação do Colégio e Curso Pré-Vestibular Oficina do Estudante de Campinas (SP).
Há semanas, um casarão decadente em Higienópolis, um dos bairros mais nobres de São Paulo, tornou-se ponto turístico depois da repercussão do podcast “A mulher da casa abandonada”, criado por Chico Felitti para a Folha de S. Paulo. No primeiro episódio da série em áudio, o jornalista nos transporta à antevéspera do Natal de 2021, dia em que, ao passear pelo bairro, ele encontra na esquina das ruas Piauí e Aracajú funcionários da prefeitura de São Paulo removendo uma árvore. Do outro lado da calçada está Mari, apresentada por Chico Felitti como uma mulher gorducha, com roupas imundas, mau cheiro e uma papa oleosa no rosto, tentando euforicamente interromper a remoção.
A descrição, incômoda para alguns ouvintes, extrapola a aparência física: o jornalista parece questionar a sanidade da mulher que, segundo ele, parte de uma teoria da conspiração para explicar a decisão da prefeitura. O incômodo perde força quando descobrimos que Mari é, na verdade, Margarida Bonetti: uma mulher que fugiu dos Estados Unidos há 20 anos para escapar de um inquérito do FBI. Na época, ela e o ex-marido, Renê Bonetti, eram acusados de escravizar a mulher brasileira que trabalhava para eles como empregada doméstica. Renê foi julgado, condenado e preso; Margarida escapou. Nesse ponto, a história, que é conduzida por Chico Felitti dentro do chamado “jornalismo literário”, torna-se ainda mais magnética com a revelação de que Margarida Bonetti é moradora do misterioso casarão de Higienópolis.
Diante desse complexo cenário de decadência física e psicológica (da casa e também de Margarida), Chico Felitti dá vida ao podcast com o propósito central de denunciar a escravização moderna. Embora apenas um episódio tenha sido direcionado para explicitar que o crime cometido por Margarida e Renê Bonetti não configura um caso isolado, a repercussão da série fez com que as denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão dobrassem, segundo o Ministério Público. Dessa forma, os exames e vestibulares podem abordar em suas provas de redação tanto a escravização moderna quanto o papel social e político do jornalismo, tendo em vista o alcance da série.
Sabe-se ainda que a justiça americana pediu a colaboração da justiça brasileira para a investigação da acusação. Após a publicação do podcast, Chico Felitti descobriu, por meio de um documento impresso que registra o inquérito, que a Polícia Civil do Estado de São Paulo investigou Margarida Bonetti no ano 2000 pelo crime cometido nos Estados Unidos. No entanto, não há informações sobre os desdobramentos do inquérito, uma vez que ele não consta em nenhum sistema eletrônico, e possivelmente os documentos dessa investigação já tenham sido queimados. Assim, há ainda a possibilidade de que as provas de redação esbarrem em um outro tema suscitado pelo podcast: a impunidade no Brasil.
Na quarta-feira, dia 20 de julho, a Polícia Civil de São Paulo entrou no casarão para cumprir um mandado de busca e apreensão. Muitos que acompanhavam os desdobramentos da operação em casa, pela televisão ou pelas redes sociais, ou mesmo em frente ao casarão pareciam estar diante de uma produção cinematográfica quase descolada da realidade. A esse respeito, a roteirista e consultora de dramaturgia Helen Beltrame-Linné publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo um texto em que discute os encaminhamentos do podcast, principalmente após a operação. O título escolhido por Helen “Cabe o Brasil inteiro dentro do true crime da casa abandonada?” nos remete à proposta de redação da FGV de 2017 que, no lugar de uma pergunta, fez uma afirmação: Quase todo o Brasil cabe nessa foto. A foto em questão mostra uma criança ao lado de sua ama de leite, uma mulher escravizada, em meados de 1860. Responder à pergunta/provocação da roteirista e revisitar a proposta da FGV é também uma interessante estratégia para se pensar sobre o assunto.
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